Por Débora Oliveira. Atriz e Agente Cultural
Quem acompanha o trabalho da Fábrica de Teatro do Oprimido de Londrina conhece um pouco dos caminhos percorridos que nos fizeram chegar neste “Caminho para um Teatro Popular”. A FTO está caminhando por aí, com projeto de Vila Cultural, circulação de espetáculos, oficinas de teatro, Mostra de Teatro do Oprimido a pelo menos sete anos, sem contar a história do núcleo ativador desta incomum “fábrica”, o grupo “Caos e Acaso”, que representado por dois “malucos” de moto foram de Londrina até Santo André em São Paulo para apreender o método do Teatro do Oprimido de Augusto Boal.
Meu percurso como atriz, faz parte de todo esse grande processo, de toda experiência que o grupo Caos e Acaso tem e que foi incorporando ao Teatro do Oprimido. Nunca participei, por exemplo, de uma montagem de Hamlet, nunca fiz uma peça de conflitos psicológicos, para entrar no elenco nunca fiz nenhum “teste”, nunca ensaiei mais de seis horas por dia, nem nunca fiz uma cena dramática que precisasse chorar. Quando conheci esse grupo tinha lá meus dezesseis anos e até então só sabia narrar as estórias infantis como “Chapeuzinho vermelho”, “Três porquinhos” etc., passando depois a descobrir relações entre opressores e oprimidos. Minha experiência teatral veio puxada pelo que já foi (esteticamente) o “carro chefe” da FTO, o “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas”.
Por isso mesmo, às vezes tenho a sensação de ter pegado o “bonde andando”, mas na verdade não, minha formação popular em teatro tem muito dos clássicos, pois se o Teatro Fórum tem um mapa de dramaturgia “aristotélico”, o Teatro Jornal tem suas raízes no Épico de Brecht, tudo o que eu fiz até hoje tem muito dos grandes clássicos como Stanislavski, Maiakovski, Berthold Brecht e muitos outros, além dos expoentes brasileiros, CPC, Augusto Boal, Companhia do Latão e por aí vai. Mas apesar de tanta influência, o pressuposto dessa engenhosa Fábrica sempre foi produzir em prol das classes populares, pensar nos oprimidos sim, mas das classes subalternas, fazer teatro Épico sim, mas procurando evidenciar as contradições entre o Trabalho e o Capital, fazer Teatro Popular sim, mas contando a história das lutas propositalmente esquecidas pelos contadores oficiais da História.
Mas contar uma história apenas não é suficiente, podemos não ter vivido, por exemplo, o momento da Guerra do Contestado, mas a identificação com essa história deve estar sempre viva. A peça “Dias Contestados” realmente está em verdadeiro processo, passou por inúmeras transformações, de início montada para palco, apresentada como um ensaio aberto, depois foi modificada para arena, neste momento passou por um significativo processo com o ator Sérgio Audi, que a convite da FTO ministrou uma oficina com as técnicas que ele trabalha em seu “Coletivo núcleo 2”, técnicas embasadas na perspectiva brechtiana.
A experiência de ter outra direção, outro olhar sobre a peça foi muito benéfica, para mim foi um divisor de águas no processo de criação da peça “Dias Contestados”. Terminada a semana da oficina pude perceber que contar uma história não é tão simples assim, é preciso pensar por quem e para quem ela é contada, e qual a história de cada sujeito, e é aí que o “bicho pega”. Não é só pensar nas classes subalternas, no proletariado, e em todos esses conceitos, é preciso pensar, além disso, no povo “subjugado pela miséria e pela fome”, qual de nós já lutou numa guerra sentindo na pele a escassez de alimento, e com doenças como tifo? Os caboclos do Contestado não tinham muita opção, ou lutavam, ou aceitavam a opressão dos Coronéis, dos soldados e da Cia Americana que construía a estrada de ferro deliberadamente. E a coisa se complica mais porque não existe um narrador único dessa história que foi vivida pelos que foram explorados, pelos oportunistas, pelos poderosos daquele contexto.
Numa peça de teatro, que não pretende ser cópia fiel da realidade isso se traduz em muitos personagens e fragmentos de histórias cotidianas, e para representar essa história é preciso mais que esforço coletivo é preciso de trabalho de ator, não de colaborador da causa, de ator mesmo, senão, não é teatro e se não é teatro vamos fazer uma roda e debater os batidos conceitos. Foi neste processo que eu percebi que o corpo, que o trabalho de criação também entrava na dança, e para que esta “dança” não fosse oca foi preciso buscar outras referências.
Depois dessa contribuição do ator Sérgio Audi, a peça passou por outra modificação, foi aos poucos adaptada para a rua, um grande desafio, tanto que do elenco inicial da peça restaram três pessoas, mas mesmo com outro elenco, as dificuldades de compor cada personagem permaneceram, ainda não encontramos o caminho da representação dialética, e nem sei se a encontraremos tão cedo, a peça está nos revelando um incrível potencial para a rua, todos do grupo sabem, mas a rua é um campo ainda desconhecido para nós, o que me faz pensar que temos inúmeras possibilidades de representar a mesma história, que na rua podemos e devemos abusar das alegorias, que o ator que vai pra rua não deve extrair de si mesmo um sorriso dos lábios, que é o mais óbvio, deve sim extrair um sorriso dos olhos, do dedo mindinho do pé esquerdo, da mão etc., ou seja, colocar toda sua capacidade imaginativa para trabalhar, para que a história contada possa ser compreendida por esse heterogêneo público. E como estamos em constante processo não há como querer mais que isso no momento. Só vamos descobrir uma possível e sincera relação com o “espaço rua” levando as dificuldades encontradas para a sala de ensaio, que é onde podemos experimentar essas inúmeras possibilidades.
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